Cada vez mais as mulheres conquistam seu espaço nas arquibancadas e dão colorido especial ao futebol.
A voz fininha é abafada pelo coro da maioria. O uniforme, mesmo adaptado, também se mistura ao do restante. Mesmo assim, elas se destacam. Em busca de um lugar cativo na arquibancada, cada vez mais mulheres se filiam a torOcidas organizadas e não perdem uma partida. O número de sócias tem crescido e elas já conquistam o respeito dos demais associados. Bem diferente de dez anos atrás, quando Andreza Lima entrou na Gaviões da Fiel, do Corinthians. "Tive represálias na própria torcida, que era muito machista. Hoje existe um espaço para as mulheres", compara.
Na Gaviões elas representam até 20% da torcida, uma média de 17 mil mulheres, segundo a diretoria. Na Mancha Alviverde, do Palmeiras, cerca de mil meninas figuram no grupo. Já as da Independente, do São Paulo, chegam a 1.300 Dessas, 50 montaram uma ala própria, o Comando Feminino, presente em todos os jogos, "seja qual for o dia ou o horário", garante Marylia Osório.
Nem sempre o time está completo, mas sempre tem alguém para representar. Na partida contra o São Caetano, realizada numa quarta-feira à noite, lá foram seis para a Arena Barueri. E quem pode chega mais cedo na sede da organizada, frequentada pelas garotas três vezes por semana, em média.
O tempo dedicado ao time, porém, é integral. Nas três torcidas rivais, o consenso é unânime: não há vida social fora da organizada. "A gente larga tudo por um jogo. Os amigos não entendem", explica a palmeirense Paula Lacerda dos Santos, da Mancha.
A família também virou freguesa quando o assunto é torcer. Ano passado, o primeiro jogo do São Paulo no Campeonato Brasileiro foi no Dia das Mães. Mas algumas delas tiveram de acompanhar as filhas pela TV. "Minha mãe não queria que eu fosse. Saí de casa chorando, mas fui e a Globo me filmou direto durante a partida", recorda Marylia.
Em alguns casos, o motivo é financeiro. "Deixamos de sair para balada para guardar dinheiro e ir aos jogos", afirma Aline Rocha de Souza da Independente.
Única corintiana numa família palmeirense, Mayle Petrone Ferraz também é a única a ser de organizada. Tristeza para o avô Osvaldo Petrone, que foi goleiro alviverde nos anos 40. "Ele quase enfartou quando entrei na Gaviões", comenta.
Assim como os homens, elas também carregam o símbolo do time ou da torcida no corpo. A corintiana Andreza disse para mãe que iria tatuar o nome da filha, mas voltou com a marca da Gaviões nas costas. Agora, quer fazer todos os símbolos que a equipe do Parque São Jorge já usou em sua história. A mesma vontade tem Laís Sodré Fernandes da Silva, que já coleciona duas tatuagens: uma escrito Palmeiras nas costas e a outra, Família Mancha Alviverde no pulso.
Ao contrário do que possa se imaginar, elas são vaidosas. Mas com limites. As da Independente passam lápis nos olhos, mas odeiam salto alto. As da Mancha chegam a se maquiar com sombra verde e aproveitam o intervalo dos jogos para ir ao banheiro ajeitar o visual, "mas só quando chove e desarruma o cabelo", pondera Laís.
Para Roberta Quaglio, na Mancha desde 1998, tais atitudes indicam uma nova geração bem diferente da qual fez parte. Como pioneira na torcida e uma das poucas a ter o privilégio de tocar na bateria, ela teme que o aumento de mulheres nas arquibancadas seja passageiro e alerta para que todas as novatas venham com um único objetivo: torcer e apoiar o time, no caso, o Palmeiras. "A torcida tem regras e você tem de se submeter a elas", avisa. Uma delas veta qualquer relacionamento com pessoas de outras organizadas. Na Gaviões, as meninas são mais rígidas: só namoram corintianos.
RITUAISA primeira caravana ninguém esquece. Pelo menos, as meninas do Comando Feminino, que realizam um batizado com as novatas. O de Gabriela Stefani Silva de Oliveira foi na ida à Vila Belmiro, quando teve de ficar no banheiro do ônibus pulando e cantando com mais duas meninas. "Quando a gente parava de cantar, os outros jogavam água", diz.
O "ritual" da Gaviões é mais tranquilo. Na verdade, é mais um costume das meninas, que só entram no estádio depois de 15 minutos do início do jogo. A mania sem explicação é levada a sério. "A gente perde de ver o gol, mas não entra antes", garante Andreza.
VIOLÊNCIAMesmo num ambiente marcado por brigas entre torcidas rivais, ou no mínimo sob constante risco de violência, a maioria das garotas afirma nunca ter se envolvido em confusão. Pelo contrário, na presença delas, os homens reforçam a escolta, de acordo com Mayle.
Há situações, porém, inevitáveis, como relatou Andreza. Grávida de sete meses, ela foi atingida por gás de pimenta durante o histórico confronto com a Polícia Militar em 2006, no jogo em que o Corinthians foi eliminado da Copa Libertadores pelo River Plate, no Pacaembu. "Mas foi a única vez que tive problemas", afirma.
A rivalidade entre as organizadas, no entanto, não diferencia gêneros. Se uma garota da Independente encontra um rapaz da Gaviões ou da Mancha disposto a brigar, não há cavalheirismo. Mais um motivo para as garotas se prevenirem. Em dias de jogo, as mulheres do Comando Feminino verificam a tabela do campeonato antes de pôr a "farda": camiseta da torcida tricolor. Em clássicos, só se trocam na sede.
TRAJETÓRIAApesar do espaço conquistado entre os homens nas arquibancadas, as mulheres ainda estão longe de competir com eles em termos de número e poder de decisão. Na arquibancada, a participação feminina se limita a acompanhar o grupo, seguindo o ritmo ditado pela bateria. Já no setor administrativo, a presença é nula. Os cargos de diretoria continuam sob responsabilidade dos homens, realidade que não mudará, segundo a diretoria da Mancha Alviverde. A torcedora Roberta concorda com a ideia e não vê problemas nisso. "A organizada é um espaço deles. Ninguém te obriga, você é quem escolhe seguir. Se entrou, tem de contribuir e aceitar os limites", diz.
No entanto, a entrada de meninas é bem vinda, até pela mudança de imagem que elas provocam na mídia. "Quando você vê uma mulher ou criança no estádio, tem a sensação de tranquilidade. Isso minimiza a associação da torcida com violência", explica Roberta.
Fonte:
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20100221/not_imp514019,0.php